Absolutamente brilhante
É este o sentimento de muitos brasileiros. Até os mais otimistas.
PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Há cadáveres demais no noticiário. Insepultos, produzem um fedor lancinante. Como em toda grande tragédia, a contagem das vítimas do "PTgate" é lenta. A pilha de corpos cresce dia a dia. Na sexta-feira, o pedaço de uma laje que se imaginava segura desabou em Ribeirão Preto. Caiu na cabeça de Antonio Palocci. Gravemente ferido, o ministro está na bica de escalar o monturo.
Talvez tenha sido esse excesso de mortos que levou muitos a passar batido pelo defunto mais ilustre: o próprio PT. Morreu também o pobre. E, suprema desgraça, não foi para o céu. O atestado de óbito do PT foi elaborado por uma legista insuspeita. É chamada de "Evidência".
No espaço do formulário reservado à causa mortis, ela escreveu: suicídio. De fato, o PT há muito vinha adotando uma conduta estranha, algo psicótica. Parecia empenhado em provar que também os partidos políticos ceifam a própria vida.
A exemplo de muitos outros suicidas, o PT viu-se às voltas com a falta absoluta de auto-estima. Passou a portar-se como um Narciso às avessas. Cuspiu na própria imagem. No governo, a psicose partidária alçou níveis extremos. No Planalto, na Esplanada, nos desvãos de autarquias e estatais, nas prefeituras municipais, por onde passou o PT fez o pior o melhor que pôde.
Em bilhete ainda não divulgado, o PT deixou anotados os termos que deseja ver esculpidos em sua lápide: "Aqui jaz a ética que, ao cair na vida, se esqueceu de maneirar". Há um corre-corre em torno do caixão. Quem vê a algaravia de longe pensa que estão tentando ressuscitar o morto. De perto, porém, percebe-se que tudo não passa de uma briga pelo espólio.
Numa ponta do esquife, está José Dirceu, o ex-chefão da Casa Civil. Ele vagueia como zumbi em meio aos despojos. Conspira contra a inevitável expulsão do aliado Delúbio Soares, gestor das arcas espúrias. No outro extremo, encontra-se Tarso Genro. Alçado à incômoda posição de inventariante do caos, ele escava as ruínas partidárias à procura de uma dignidade que todos sabem inexistente.
Importa pouco saber quem sairá vitorioso da contenda. Seja quem for, aquele PT ilusório, portador de esperanças vãs, jamais voltará à vida. O partido do futuro foi irremediavelmente reduzido à condição de partido do faturo.
A morte do PT foi prematura. Ao experimentar os prazeres do poder no apogeu da juventude, o partido tornou-se alvo da cobiça universal aos 25 anos. Entregou-se com avidez à nova aventura. Sucumbiu às relações plurais sem zelar pela escolha dos parceiros. Não soube dosar as próprias pulsões.
Em meio à atmosfera de volúpia, o PT foi pilhado em novas e inusitadas poses. O partido da castidade deu preferência às posições ideológicas mais exóticas. Aceitou gostosamente o assédio dos interesses mais contraditórios. Deu azo a perversões homéricas.
Atônito, o Brasil espiou os primeiros laivos da orgia através de frinchas abertas no mármore do Palácio do Planalto. Súbito, o país descobriu no imenso telhado de vidro do PT um posto de observação mais adequado. Dali, pôde-se acompanhar sem restrições o strip-tease da virtude.
Súbito, a legenda imaculada integrou-se à baixeza comum a todos os partidos.
O PT provou-se capaz das maiores abjeções. Mal acordou do sonho presidencial e já foi dormir com o PL, o PP, o PTB e o naco mais assanhado do PMDB. O partido hipotecou a alma às conjunções mais impudicas. Escorado na castidade presumida do pseudopresidente Lula, tornou-se a maior evidência de que, com o tempo, qualquer um pode atingir a perfeição da impudência.
A ascensão do PT enganara até os analistas mais argutos. Aqui e alhures. Mencionem-se dois exemplos eloqüentes:
1) em novembro de 2002, falando à Folha, o historiador inglês Eric Hobsbawm viu na vitória de Lula um dos poucos eventos do começo do século 21 que inspiravam "esperança";
2) no prefácio de um livro lançado em dezembro de 2002 ("Lula, o filho do Brasil", de Denise Paraná), o escritor Antônio Cândido enxergou no PT um partido "vivo", capaz "de escolher no arsenal ideológico os instrumentos adequados à ação política transformadora desse Brasil pesado de iniqüidades seculares".
No mesmo livro de Denise Paraná, à altura da página 147, o próprio Lula foi indulgente consigo mesmo. Pintou assim o seu auto-retrato: "(...) Se eu não tivesse algumas [qualidades pessoais] não teria chegado aonde cheguei. Eu não sou bobo. Acho que cheguei aonde cheguei pela fidelidade aos propósitos que não são meus, são de centenas, milhares de pessoas."
Decorridos dois anos e oito meses de seu mandato, Lula encontra-se na constrangedora posição do presidente supostamente honrado que preside uma esbórnia inaudita e continua empunhando a bandeira da moralidade. Assume o papel de bobo que recusava. O Lula de 2005 não faz jus nem à imagem que fez de si mesmo nem às avaliações de Hobsbawm e Cândido nem à confiança dos 52.788.428 votos que recebeu em 2002.
A morte do PT mergulha o país numa perigosa fase de desencanto. É como se a idade da ética houvesse terminado. À medida que floresce o "Mula" (Movimento Unificado dos Lulistas Arrependidos), o brasileiro se dá conta de que Deus está em toda parte, mas é o Tinhoso quem controla a política brasileira.
Um fantasma assombra as noites de Lula na Granja do Torto. Trata-se da assombração do próprio Lula, quando era um puro e ingênuo socialista. A alma penada ronda-lhe os sonhos, brandindo faixas com bordões inconvenientes. Coisas como "Abaixo a corrupção" e "Diga não aos 300 picaretas do Congresso".
Borboleta da política brasileira, o PT protagoniza no seu ocaso uma inusitada volta ao casulo, túmulo da lagarta. O partido cavou na enciclopédia um verbete indigno de sua história. Descerá às profundezas dos livros como larva. Deixa para a posteridade um rastro pegajoso de perversões.